segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Arte de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na corte imperial


GONDRA, José G. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004, 562p.


A interrogação sobre a produção social da escola e o lugar a ela conferido na construção de uma ordem civilizada constitui-se no tema central deste livro, que representa contribuição significativa no conjunto dos esforços de reconfiguração da historiografia educacional brasileira, empreendidos nos últimos anos. Ancorada em ampla pesquisa documental e fecundo diálogo com a produção historiográfica, o autor indaga sobre o papel da ordem médica na "invenção da escola", investigando sistematicamente a presença dos preceitos médico-higienistas na configuração do padrão moderno de escola. Examinando o projeto de constituição da escola como lugar de cura para os males de uma sociedade representada sob os signos da incivilidade, desordem, curandeirismo e desrazão, Gondra intenta "debater a tese de que a própria invenção da educação escolar no Brasil se deu a partir de uma matriz médica" (p. 83).Elegendo como fontes teses defendidas por médicos formados pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, entre 1850 e 1890, o autor indaga sobre o processo de institucionalização da medicina no Brasil oitocentista, bem como sobre as medidas políticas defendidas pelos médicos com vista a combater as práticas da população. Percorrendo essa dupla interrogação, examina as representações em relação aos projetos de formação dos médicos e à população em geral, produzidas em nome da racionalidade médica, procurando compreendê-las como práticas, que expressam concepções de educação e propostas de intervenção social. As representações que os médicos produzem de si mesmos, dos assuntos abordados, dos procedimentos de escrita da tese e, além disso, as representações sobre a cidade, o povo e a educação escolar constituem-se, nesse sentido, os aspectos sobre os quais incide o acurado exame empreendido por Gondra.O processo de construção do campo médico, no Brasil do século XIX, e de constituição da sua autonomia, autoridade e legitimidade para dispor sobre a saúde, a doença, a morte, a vida individual e a organização das coletividades configura-se no mote do primeiro capítulo. Inventariando as diferentes orientações que regiam os cuidados com a saúde e as práticas de cura, no período que antecede a criação dos primeiros cursos de cirurgia e anatomia no Brasil, o autor oferece elementos para a compreensão das múltiplas estratégias acionadas pelos médicos no sentido de constituírem a sua legitimidade no tratamento das questões ligadas à preservação da saúde, as quais se configuravam, até então, em domínio de cirurgiões-barbeiros, barbeiros, sangradores, boticários, curandeiros, entre outros sujeitos. No conjunto dessas estratégias, ganham relevo a criação da instituição de formação (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro), a organização da corporação (Academia Imperial de Medicina) e o periodismo médico, iniciativas investidas de dupla função, na medida em que respondiam tanto à necessidade de unificação e controle das regras internas do campo, quanto aos propósitos de legitimação da intervenção social preconizada.O minucioso exame das regras segundo as quais se procurou ordenar o funcionamento do locus de formação e da corporação médica, associado a uma leitura cuidadosa da atuação dessas instituições, põe em cena os meandros que marcaram a institucionalização da medicina como saber autorizado, em sua articulação com o Estado, demonstrando que a ciência médica não se impôs de modo uniforme, nem mesmo depois da criação dos cursos de formação. Tal situação encontra explicação tanto na legitimidade dos "profanos", como na insuficiente capacidade dos representantes oficiais da medicina de conter um quadro nosográfico agravado pela pobreza e pela emergência de epidemias. Em suas análises, o autor procura demonstrar que a afirmação da crença no poder sem fronteiras da razão e da ciência correspondeu a amplo investimento de desautorização e desqualificação de múltiplos discursos e práticas, externos ou internos à medicina, representados pela ordem médica como sinônimos de charlatanismo e ocultismo. Tensões, disputas, concorrências, competições, acordos, silenciamentos, seleções e expulsões compõem o cenário em que se procurou configurar o discurso médico como única voz autorizada a dizer sobre a melhor forma de conduzir a vida.O alargamento do horizonte de interesses e competências dos médicos, expresso na formulação de intervenções que extrapolam a esfera da vida individual, voltando-se para problemas sociais das mais diversas ordens, constitui-se no foco do segundo capítulo, que examina sistematicamente os sentidos de tal alargamento, bem como as condições que o tornaram possível, os dispositivos acionados para garantir o seu sucesso e os objetos que passaram a ser recobertos pela atuação dos médicos. Sem ignorar a existência e as dimensões dos graves problemas sociais e de saúde que assolavam o Rio de Janeiro, Gondra chama a atenção para os propósitos de popularização e legitimação do saber médico que presidiram esse movimento, por meio do qual se procurou inventar a dimensão médico-sanitária dos problemas sociais. Como assinala o autor, os problemas evidenciados e produzidos com base no exame sistemático da cidade articulam-se no sentido de justificar uma intervenção médica voltada para os objetivos de ordenamento, regulação e civilização da cidade e seus habitantes.Na análise do projeto de regeneração social engendrado pelos médicos, o autor procura detectar o papel conferido à educação escolar. Examinando as teses escritas ao final do curso de formação, assinala a dispersão dos temas sobre os quais incidiu a atenção dos médicos, conferindo especial relevo, no conjunto das preocupações enfeixadas sob o rótulo de "hygiene", às preocupações com a escola e os temas educacionais. O rigoroso tratamento conferido às teses, como fontes e objeto da investigação, leva-o a indagar sobre o pertencimento social dos sujeitos da escrita, os constrangimentos institucionais que presidiram a elaboração e sustentação das teses, assim como a concepção de autoria. Tais indagações se sustentam sobre o pressuposto de que a escrita dos médicos se configura em prática cultural controlada e controladora de outras práticas, o que se traduz em uma leitura das teses como uma escrita institucional, parte de um projeto de organização de um tipo de saber e das estratégias forjadas no sentido de garantir a sua legitimidade.Tomando como referência as categorias que compõem o modelo médico-higiênico francês, adotado nas teses para discorrer sobre os problemas educacionais, o terceiro capítulo examina as representações produzidas pelos médicos sobre a educação escolar. Na investigação sobre o projeto de conformação do discurso pedagógico e da organização escolar forjado pelos médicos oitocentistas, o autor discute o papel dessas categorias na modelação do discurso da ordem médica, assinalando os sentidos de pertencimento a um corpo doutrinário, que perpassam a adesão a tal modelo. Como assinala Gondra, esse modelo, balizado pelo imperativo da moderação e pautado na combinação binária de indicações e contra-indicações, configurava-se num extenso programa de regras para o funcionamento dos colégios. Regras que incidiam sobre cada detalhe e tinham como objetivo a constituição de sujeitos física, moral e intelectualmente sadios, por meio de uma intervenção que, assumindo como eixo a instituição escolar, tinha como alvo o reordenamento da sociedade.O projeto de educação física, intelectual e moral defendido pelos médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, configurado como "utopia de uma educação integral", é o objeto sobre o qual se debruça o autor no quarto capítulo. Examinando a "trindade pedagógica" em que se pauta o projeto de educação escolar, analisa as representações acerca dos escolares fabricadas em nome da racionalidade médica, chamando a atenção para as dimensões preventiva, corretiva e curativa em que se assentam as intervenções propostas. A indagação sobre a utopia de constituição de um homem novo, por meio de uma educação renovada, constitui-se no eixo segundo o qual são examinados os dispositivos de disciplinarização do corpo, da inteligência e das vontades, formulados com vista à regeneração da sociedade. Nessa utopia de educação integral, as práticas corporais respondem, como destaca Gondra, aos imperativos de desenvolvimento simultâneo do corpo e do espírito, tendo como alvo a regulação física e moral. Nessa análise, as aproximações entre o projeto de educação moral e os princípios defendidos pelo catolicismo levantam instigantes indagações em relação aos vínculos entre ciência e religião que convivem no projeto urdido pelos médicos.Configurada como "ciência integral", "ciência da infância" e "ciência da escola", a higiene procurou submeter a educação escolar aos seus princípios, reclamando para si o poder de orientar as reformas educacionais julgadas urgentes e inadiáveis para assegurar o ingresso do país na ordem civilizada. Instituindo-se em autoridade da ciência e da moral, o médico torna-se artífice de uma cruzada em favor da moralização dos colégios e da regeneração da infância e juventude que os freqüentavam, cabendo enfatizar que esse projeto visava, no limite, à constituição de uma sociedade moralizada.Construída na interface entre a história da medicina e a história da educação, esta obra traz efetivas contribuições para compreender a participação dos intelectuais e, mais especificamente, dos médicos na construção de um projeto de modernidade para o Brasil e, ao mesmo tempo, para a análise do lugar que a educação escolar é chamada a assumir nesse projeto civilizatório. Ler Artes de civilizar é, nesse sentido, um desafio para pensar a "invenção da escola" brasileira, a partir de uma interrogação sobre os efeitos positivos do poder na produção do real e na instauração de domínios de objetos e rituais de verdade.http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782006000300014


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